Estacas e Perspectiva

     Em Escrita Criativa, curso de graduação do qual faço parte, constantemente somos desafiados a escrever com base em textos renomados. Criação inspirando criação. O objetivo variar de aplicar a técnica de um texto a olhá-lo de perspectiva diversa, ou ainda ampliar as possíveis compreensões a partir da leitura que fizemos. A produção abaixo é fruto de um desses momentos: lemos o conto Estacas, de George Saunders, e fomos instruídos a contar os eventos narrados a partir da perspectiva de um vizinho. Minha resposta ao exercício não foi o que deveria ter sido e, justamente por isso, aprendi muito com essa releitura. O compartilhamento é essencial nesse caso não só pelo registro da minha rota de aprendizagem, como também para deixar claro (principalmente a mim) que "erro" é apenas uma forma de ver esse trabalho. 
   Convido todos a tentarem esse exercício em algum momento: ler e escrever para além do que é original à escritura - ou para tudo que ela contém implicitamente. Como escritora, sinto-me cada dia mais próxima dos autores que admiro, em busca constante pela manutenção do diálogo com suas obras. Esse exercício é mais uma forma de fazê-lo, de modo que espero ser este um conto que faz jus ao todo que este Estacas me trouxe. Que seja uma leitura, acima de tudo, interessante.  


Perspectiva
    Benjamin está com seis meses agora, mas quando olho lá para fora, não consigo parar de pensar em seus dois, três anos: o verde agora tão desabitado do quintal, ornamentado pelos brinquedos de cores vivas deixados para trás, marcando o rastro dos passos do meu filho. Visualizo pistas de carrinho, arremessos de futebol, corridas ao redor da casa, dinossauros e monstros dos quais ele salvará o mundo, heróis mascarados a povoar sua imaginação. Que histórias inventará para si mesmo? Que sonhos construirá para o futuro? Com ele no colo, a dormir sereno, sou tomado de assombro quando ouço o estrondo metálico da queda. Minha cabeça ergue de imediato: as estacas estão no chão, vencidas pelos novos moradores. Era marca registrada do meu recém falecido vizinho de porta, vesti-las de acordo com seu humor inconstante. Há no bairro quem conte da época em que ele o fazia com fantasias mais tradicionais, mas isso foi antes dos filhos saírem de casa. Daí em diante, fase que presenciei após a mudança, o poste do outro lado da rua virou meio de arte, correspondência ou escape, conforme a forma que escolhia para adornar sua cruz. Deixava incomodados seus arredores, mas nunca dei muita bola a suas esquisitices. Nenhum de nós podia culpá-lo por sentir, não caber e, então, extravasar as excentricidades que acompanham a velhice. Alguém com percepção artística talvez visse ali potencial suficiente para escrever uma história, ou um ensaio qualquer, enquanto uma mente mais aguçada, talvez enxergasse o tema de sua próxima pesquisa. Eu só achava engraçado. Não que importe agora: claramente, meus novos vizinhos de porta discordam de suas manifestações. Torno a olhar para Benjamin, tão pequeno, mas já receptor de tamanhas expectativas: quem será essa criança conforme cresce? Será ele do tipo que envelhece com calma, ou do tipo que recebe a idade tumultuado? Imagino uma cruz cravada na entrada da nossa casa, seus espantalhos expostos ali, e só consigo pedir, em silêncio, que ele nunca precise de um desses por solidão.


O livro em que Estacas se encontra é Dez de Dezembro, coletânea de contos do autor George Saunders (traduzidos por José Geraldo Couto), publicada no Brasil pela editora Companhia das Letras em maio de 2014. É possível ler trechos do livro através da amostra disponibilizada pelo Google Livros em: https://bit.ly/2lYyLdT, e/ou adquiri-lo pelo link: https://amzn.to/2M2KKk0. 

(imagem: Unsplash)


leiasejella
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